sábado, 26 de maio de 2012

O novo velho canto de Gal Costa – conversas sobre Recanto (2011)


Publico aqui uma crítica excelente feita por um amigo (o mesmo que escreveu o artigo sobre a propaganda do Renault Clio, um dos sucessos do blog e que você pode conferir clicando aqui) ao último trabalho de Gal Costa, o albúm Recanto (2011) que conta com a produção de Caetano Veloso, que assina todas as composições. Na sequência, publico também os comentários que eu fiz sobre o seu texto, falando de minhas impressões sobre o disco. Achei esse formato fragmentário mais interessante do que produzir um texto mais orgânico, para manter a tensão nas opiniões (eu, por exemplo, vejo o tropicalismo e a cultura de massas com muito mais simpatia do que ele), e por preguiça, evidentemente.

O RECANTO
"Recanto" do Caetano, cantado pela Gal, aparelhado pela nova geração carioca. Diante do inesperado acordo entre otimismo e pessimismo, triunfante aqui desde 2003 (esse, um produto do que as duas oposições aos Golpe Militar construiram no país), o disco toca o tempo, por voltar-se para o exemplar no caminho dos dois artistas, em clima meio de fim de linha, meio de renovação. Postiços e verdadeiros, a velhice é o momento do balanço típico da madureza. A juventude, no entanto, com sua têmpera frugal e sonhadora, formando a liga entre as duas pontas, força caminho. E às vezes contribui para a disposição de compreender, às vezes arrebata tudo, com pretensão, reatualizado os limites do passado.

O resultado é cativante desde o começo, depois, vai aparecendo em suas qualidades e defeitos. No geral, predomina uma impressão nada semelhante às que se tem com os outros discos do Caetano de 80 para cá. Mas que, além de constituir a marca de seu projeto Cê, lembra muito a década de 70 dos Tropicalistas: um clima de desistência vitoriosa, um paradoxal movimento de constatação dos próprios limites, abertura para a nova realidade, caracterizado, porém, por iluminação e cegueira em igual medida. Um querer regojizar-se com que não se compreende bem, porque é novo; mas, ao mesmo tempo, um estar quites com o passado e o presente, de onde se espera tirar vontade, insinuando-se nessa báscula ora superioridade, ora espírito democrático; ora pendor memorialista, ora olho firme na "cara do mundo", ora transcendência vazia com "sexo e dinheiro". Ponto alto desta fase do Caetano - feito de muitos acertos - na qual, para ver no que foram dar os corações de "Muito" (e o julgamento, mesmo ambíguo, não é favorável), ele está revisitando, com rock, com o videogame sonoro do Kassin e com sua antiga pegada experimental (de "Joia", mais que de "Araçá Azul") o segundo tempo do projeto Tropicalista.

Nisso, o ouvinte se surpreende com o quanto um olhar historicamente carregado pode iluminar o presente.

Por exemplo, na canção de abertura "Recanto Escuro", fixando a perspectiva da terceira idade - e dos tempos em parte sombrios - justamente ao aludir ao caminho da mata virgem para a cidade, "preso ao dinheiro", com o "azul do outro lado do muro". Em "Autotune autoerótico", reflexão sobre o fetiche (sexual, técnico, mercadológico, musical), marcada pela ponderação lúcida sobre o que distingue (e não distingue) o canto autorizado, supostamente belo e carnal, da mania técnica democratizada (iniciada, talvez, com o jazz vindo dos EUA, de que João Gilberto, Jovem Guarda e Caetano são parte). Na house music "Neguinho", cuja inconfundível batida remonta à era FHC, e vem descobrir as raízes do presente, para o qual o filminho arteplex e a violência bruta bastam, desde que com algum ganho autoerótico (mesmo que no final, "neguinho que eu digo seja nós"). Tudo resultando na toada extremamente aguda "Segunda", comparável aos grandes poemas de Chico Alvim, em que as dissonâncias racistas, incontornáveis no presente, são expostas com toda força (o Eu, com algo de português e suas prerrogativas traídas, é quem arrasta os tamancos no dia de branco, já o chefe é meio mulato).

A súmula da qualidade do disco talvez seja "Miami Maculelê", que fundindo funk e maculelê, no mesmo movimento, legitima o gênero estigmatizado, pela ligação com a cultura negra, dos escravos, e sublinha o trânsito entre sensualidade e violência de ambos os gêneros (maculelê é uma dança marcial). Canção que, além disso, retoma a linhagem arcaico-moderno querida ao Cinema Novo (a do bandido comunitário), mas de modo afinado ao presente: ou seja, quando o malandro de verdade não é aquele que dança com o novo acordo de regra e subversão, mas aquele que dança com o novo acordo de regra e subversão. Sem contar a referência ao São Dimas, cantado pelos Racionais Mc em Vida Loka, onde o grupo, tentando encontrar um compromisso entre sua terceira e segunda fase, afirma a ambiguamente a disposição de sobreviver acima do vínculo comunitário (pois assim é o paradoxal horizonte imposto ao pais, junto às recentes melhorias - desagregador e, no entanto, progressista).

Como não poderia deixar de ser, no entanto, também sobram ilusões, mistificações e bobeiras gratuitas no disco, ficando indicado, assim, no todo, o que havia de velho e ineficiente antes e aqui permaneceu. Tome-se por exemplo o filosofê "Sexo e dinheiro", no qual, ao contrário do que o Eu-lírico assegura, o par arrebanhador, representado pelos cães de igreja, não está tão distante. O fecho de "Recanto escuro", em que mesmo a disposição de olhar o decurso histórico sem ilusões redunda em afirmação acrítica, autocomplacente, do próprio canto (como em "Força Estranha"), sem que desta vez a melodia referende o ascenso. "Cara do mundo", que, reciclando o prazer infantil da flanerie, em 22 e no modernismo europeu subversivo, - modelo inadequado para se tratar a barafunda atual, pois auspicioso - se perde em contrastes fracos de doce e amargo, bem como em caetanices tais quais "dor de tanto prazer". E por fim, certamente, a linda canção de Wisnik, central no disco, "Madre Deus", cuja letra transforma a difícil compreensão do momento e o lusco-fusco da velhice, predominantes no disco, em caos repousante, pacificado, transcendente em si mesmo ("frente às estrelas/costas para o planeta", "sou uma seta sem direção").

Em suma, num disco tão excepcional como este, as estrelas, vistas do ancoradouro, brilham e requerem um peso negado pelo assunto. Coisa que se deduz, não só da audição do disco, mas também da ponderação de seu resultado com o panorama atual da música popular. Aliás, em poucos momentos isso ficou tão claro, quanto no último episódio do TV Folha. Quem viu, viu. A Gal comentando o disco, louvando e alinhando-se mais uma vez com João Gilberto, detalhando o projeto do parceiro, gabando-se de seus agudos. E, desta vez, tentando ficar à vontade diante da câmera, exposta como estava ao impiedoso close sobre suas rugas (que, de passagem, assegurava a parcial leitura intimista do disco). Enfim, uma posição difícil de sustentar e no entanto sustentada, que não faz jus à parte boa do disco, mas indica muito bem a ruim. Especialmente tendo em conta que, no bloco anterior, o assunto foi o show que o Racionais MCs fez na ocupação Mauá em SP, com destaque para "Marighella".
OS COMENTÁRIOS
Puta disco neh? Estranho, sombrio, reflexivo. Eu concordo com você que é bem Caetano, porque continua algumas reflexões dele desde o Ce, sobre a velhice, sobre a negritude. Mas é Caetano comentando a Gal, e daí toda a reflexão sobre a voz, sobre o cantar.
Também acho que é um disco com altos e baixos. Acho o filosofê de "Sexo e dinheiro" horroroso, superficial mesmo, cantada burocraticamente. Ao mesmo tempo, as últimas faixas são fantásticas. Gosto da do Wisnik (Madre Deus) porque, apesar de todo deslumbramento da letra e da melodia,  acho que o arranjo dá uma boa balanceada (aquele breque do meio é incrível). Mas o minimalismo sombrio de Recanto Escuro, com aquele baixo que vai se perdendo na marcação, é melhor e vai mais longe, mesmo com a redenção final pelo cantar - e pelo violão, que entra só no finalzinho também. Mansidão é ainda o deslumbramento Bossa Nova mais tradicional, que se encanta com o potencial da voz e da melodia só que de maneira mais contida. Aliás, vc lembrou bem a relação com o experimentalismo pós tropicalismo: esse tipo de arranjo que vai traçando comentários à canção é muito bem realizado, e ainda soa "experimental" mesmo hoje em dia. No geral, penso que os arranjos vão tensionando a crença no canto, no poder da melodia (melodias que, no geral, são bem mpb tradicional, daí a impressão que deu para alguns que o disco não vai tão longe na experimentação. É certo que ele não vai, mas é certo também que o que se discute no disco é justamente o significado da experimentação), refletindo sobre ele.
Mas, no geral, tendo a concordar com você: depois de todos os tensionamentos e “radicalismos” o que resta é ainda a afirmação do poder do canto, ainda que de uma nova forma de cantar, um Recanto, espaço que comporta a dor e o prazer. Renovação que não vai ao fundo, e que tende a reafirmar mais que modificar, apesar dos bons momentos, que são em maior número que a média MPB atual.

Outra coisa interessante é que Caetano continua dando alfinetadas na concepção de mundo do RAP, que ele julga equivocada para o Brasil por ser racialista e importada dos EUA (como se lá ela não fosse tão "falsa" como aqui, apesar de ser falsidade de outro tipo). Esse diálogo tem sido explícito nos últimos tempos, e ficou bem claro no último disco de Caetano, com a canção "O homem". Aqui, em "Segunda" ele volta ao tema (e também na última faixa, indicando a centralidade do tema em sua produção), ao mostrar um patrão negro que tem um empregado branco, a quem é dada a voz. Caetano desloca o debate da questão racial para o social, da cisão entre pobres que consomem e que não consomem. Nem uma palavra sobre o exemplo que ele escolhe (padrão negro) ser um caso de exceção no país, e não modelo a partir de onde se pensar a totalidade de nossas relações complexas. Pra mim, ele não precisaria deslocar o foco para mostrar que o segundo aspecto é também interessante (os que consomem e os que não consomem).
Já Miami Maculelê é foda mesmo, desde o título que junta o Miami bass, origem do funk carioca, com o maculelê, que hoje em dia é bem difundido em rodas de capoeira. Uma mistura fudida de bem feita. Mas de novo eu penso que tem provocação (afinal, o que o Caetano faz de melhor, criar um modelo de argumentação que te obriga a tomar posição, e faz a gente ficar discutindo que nem besta), porque ele escolhe o funk e não o rap como lugar de afirmação de identidade e resistência, ligando o Racionais (via Dimas) e o Jorge Ben numa linhagem de resistência festiva que não é exatamente a do Racionais.

Para escapar fedendo, clique aqui: GAL COSTA - RECANTO (2011)

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