sábado, 14 de abril de 2012

“Ai se eu te pego meu reitor”: Michel Teló, xerife Rodas e o recrudescimento do conservadorismo nacional (parte I)

“Só que tem muito intelectualzinho de esquerda que ganha a vida defendendo vagabundo. E o pior é que esses caras fazem a cabeça de muita gente”
(Capitão Nascimento)
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Em vista dos últimos acontecimentos, o paranaense Michel Teló deve estar vendo sua vida desdobrar-se diante de si como num sonho. Ou antes, como no estágio de vigília, em que ainda estamos completamente acordamos, e os eventos vivenciados durante os sonhos noturnos se misturam à realidade cotidiana. Entretanto, contrariando certa concepção do senso comum, são nesses momentos - em que a realidade ainda não foi completamente simbolizada pelos sentidos - que o Real de sua dimensão fantasmagórica se revela. São momentos de revelação, quando as estruturas desvelam toda sua fragilidade, correlata da fragilidade do próprio sujeito que as configurou.

Tudo começou quando Teló, cantor de relativo, porém, modesto sucesso nacional, teve sua gravação de “Aí se eu te pego” transformada no maior sucesso musical de 2012 no mundo todo, tornando-se uma das canções mais gravadas e executada de todos os tempos, igualando-se a outras mais canônicas, como “Garota de Ipanema” e “Aquarela do Brasil”. Uma matéria elogiosa da revista Forbes chegou a comparar Teló com Carmem Miranda (comparação mais pertinente do que pode parecer, de início) e a revista Época lançou uma matéria de capa – também elogiosa - em que dizia que o cantor conseguia transmitir os valores da cultura popular para todas as classes (particularmente, eu acho que a Gaby Amarantos faz isso melhor). O cantor também conseguiu emplacar seu hit no top 100 da Bilboard, feito antes conseguido apenas por nomes que projetaram sua carreira voltada para o exterior, como Sérgio Mendes, Bebel Gilberto, Céu e Sepultura.

Vertiginosamente o hit ganhou numerosas gravações nas mais diversas línguas, levando o rapaz ao estrelato mundial da noite para o dia. O mais curioso, interessante ou assustador, a depender da perspectiva, é que seu sucesso não foi fruto de uma estratégia de lançamento internacional minuciosamente planejada (creio que sua produtora ou gravadora sequer teriam forças para esse empreendimento). No que pude averiguar - e aqui posso estar enganado - o movimento foi mais ou menos aleatório (é claro que no interior de um sistema altamente gerenciado, ou administrado, para ressuscitar uma expressão algo “fora de moda” dos frankfurtianos) e se deu para além das determinações diretas da Indústria Fonográfica. Neymar, mais novo xodó arrepiado dos brasileiros, craque de bola e fã declarado do artista, comemorou alguns gols fazendo a coreografia da canção. “Delícia... Delícia... Assim você me mata”. Na sequência, alguns jogadores brasileiros também fizeram a dancinha na Europa e, sobretudo, ensinaram para alguns craques consagrados do futebol europeu, como Cristiano Ronaldo. Depois disso, a moda foi se espalhando e versões da canção com a dança começaram a circular na rede (algumas inclusive muito interessantes, como a que mostra soldados israelenses fazendo a coreografia, o que acaba conferindo uma dimensão inusitadamente sombria para os versos “Aí se eu te pego”), chegando a assombrosos números de acessos na rede. E o verão mundial nesse ano foi verde-amarelo.

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Para além dos méritos da composição - que nesse caso creio que é um dos aspectos menos significativos e, por isso mesmo, dos mais explorados por aqueles que criticam o artista. Em todo caso, só pra não passar batido, é um caso absolutamente comum, presente em qualquer canção mais somática, de refrão temático para celebrar a conjunção entre sujeito e objeto - esse caso inédito em território nacional é preciosamente revelador dos mecanismos atuais de funcionamento da Indústria Cultural, sendo fundamental que se atente para as relações de parasitismo e complementariedade no interior das ramificações da Indústria do Entretenimento. Pensar, por exemplo, em como a Indústria Fonográfica, que passa por um processo profundo de crise, se retro-alimenta da ascensão vertiginosa da Indústria do Futebol, e como a partir disso pode elaborar novas estratégias para se manter no topo – pensando, por exemplo, em vínculos contratuais mais diretos de cantores e artistas em geral com o mundo da bola, promovendo espetáculos bizarros, divertidos e altamente lucrativos no futuro. O que de cara coloca uma série de questões para uma concepção muito rígida de planejamento da Indústria Cultural, ou certo mito de passividade da recepção, exigindo que se estabeleça uma série de mediações de ordem subjetiva para se pensar as relações no interior do sistema. O caso serve também para refletir sobre a condição híbrida de um objeto de cultura de massas, como é a canção desde seus primórdios (mas que após Michael Jackson chega a seu momento de maturidade). Tal objeto parece constituir-se a partir de um processo cada vez maior de fragmentação, cujo segredo consiste em inserir em cada uma das partes relativamente autônomas – arranjo, coreografia, apresentação, vídeo, marketing, etc – a relação com o todo, de modo que a genialidade está na possibilidade de sustentação infinita dessa tensão, sem deixar que se desfigure o sentido. A questão no caso, não é mais a construção de um objeto pleno autônomo, e com isso os critérios de avaliação que pensam a partir de uma concepção imanente de forma precisam ser re-avaliados. Não estou dizendo que Teló consegue fazer isso com sucesso (Billie Jean consegue, assim como Pink Floyd e os Tropicalistas), e sim buscando tirar conseqüências do fato de que o sucesso da composição se deve inicialmente mais à reprodução de sua coreografia – muito pobre, é bom que se diga, assim como é bom que se diga que as do É o Tchan eram muito melhores, e várias do Funk também – do que a relação da melodia com a letra. Nesse caso, qual será o “centro” da composição? Será possível ou desejável determiná-lo?
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Passado pouco tempo após toda essa euforia inicial da Teló-mania, e  invertendo a equação que geralmente se atribui aos mecanismos da cultura de massas - o excesso de exposição não fez o autor ser cada vez mais exaltado, contrariando a máxima adorniana de transformação do quantitativo no qualitativo. Ao contrário, nesse caso, as reações contrárias começaram a se tornar mais e mais freqüentes. Primeiro as já costumeiras críticas contra a baixa qualidade estética da composição foram ficando mais duras e desabusadas, incluindo um episódio constrangedor no Jornal Nacional, quando foi lançado um clipe com a versão em inglês da música, que foi seguida por risos dos apresentadores, atentando para o quanto a canção era “grudenta”. O interessante aqui é apontar a contradição: a canção foi lançada no horário mais nobre do “padrão globo de qualidade”, entretanto, o desconforto foi cinicamente marcado, e não pode ser tomado com irrelevante, marcando uma fissura nas relações entre simbólico e econômico. Depois as coisas foram saindo do campo da opinião e atingindo áreas mais sérias da vida do cantor, como a acusação de que a canção teria sido composta por um grupo de sete paraibanas em viagem à Disney.. Apesar da acusação tocar num ponto problemático do sistema de direitos autorais no Brasil, que sempre foi algo próximo do descaradamente criminoso, convém se perguntar sobre o grau efetivo de culpabilidade do rapaz - como se ele fosse uma espécie de ladrão de sambas pós-moderno - uma vez que a canção havia tido pelo menos duas outras versões antes da que se consagrou. O que levanta ainda outra questão ainda mais delicada sobre a própria noção de autoria nesse caso. Pois não foram os elementos estéticos introduzidos na versão de Teló os responsáveis pelo sucesso da canção, aonde as outras fracassaram? Não seria ele, no caso, tão autor quanto os demais? O que é, afinal, um autor, nesse caso?

Em todo caso, a coisa ficou tão feia para o cantor que teve até revista de fofoca que tinha como matéria de capa o “Inferno Astral de Michel Teló”. Mas o que essa rejeição em massa pode nos dizer sobre os padrões de legitimidade presentes em nossa sociedade, e sobre o momento político atual? Será que esse movimento tem relação exclusiva com a qualidade da composição? O brasileiro só produz e consome canções de qualidade e de bom gosto, de altíssimo padrão de qualidade? Enquanto o sucesso do rapaz era uma “aberração” nacional, dava pra esconder a sujeira debaixo do tapete. O sucesso no Brasil sempre pode ser explicado a partir da falta de cultura e senso crítico do povo brasileiro, que adora consumir porcarias. O povo associado com a carência, com a falta, numa espécie de olhar complacente de superioridade sobre a miséria. Mas a questão se complica quando nossos pecados íntimos são mostrados e aprovados pelos padrões internacionais de qualidade – aprovação que faz todo sentido, uma vez que a canção de Teló não fica nada a dever as de ícones pop globais como Shakira, Beyoncè, U2, Justin Bieber, e tantos outros. Nesse caso, fica difícil o reducionismo de sustentar que mesmo os europeus sofrem de defasagem cultural – afinal, como macular nosso modelo? No momento em que “Ai se eu te pego” cruza a porteira do curral para ganhar o mundo, é fundamental que seu valor seja imediatamente rejeitado e questionado, marcado como ilegítimo e visivelmente inferior. Aberrante. O movimento principal no caso consiste em desvincular essa canção de certa imagem de Brasil construída para nós mesmos, tipo exportação. Colocá-la para fora da boa tradição cancional brasileira, que é o verdadeiro modelo de representação da nossa identidade, aquele em que devemos nos reconhecer. 

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Esse movimento não é, alias, exclusivo do caso Teló. Na história da canção brasileira, foram sendo desenvolvidos dois modelos de avaliação complementares. O paradigma da modernidade, que consiste em uma determinada maneira de se apropriar do material sonoro e que tem por modelos paradigmático a Bossa e a MPB, e que comporta alguns sistemas de valores próprios, como forma crítica e bom gosto. E o paradigma da tradição, que confere legitimidade a formas populares ancoradas em uma pretensa experiência comunitária mais orgânica, como o samba. Assim, toda uma longa tradição de canções que não guardam relação direta com algum lugar “tipicamente nacional” (sertão, morro, comunidade) ou com algum projeto de subjetividade nacional é colocada no segundo escalão da música nacional, como se essa obra, produzida aqui, em certo sentido não preenchesse os requisitos de brasilidade.

O movimento propriamente perverso e sagaz da ideologia nesse caso é apresentar esse juízo social e ideológico de estabelecimento de cânones como um caso de juízo estético. Teló e toda a música tida como brega ou romântica é atacada como sendo de mal gosto e mal feita, sem que se explicite ou mesmo se compreenda os mecanismos de feitura desse tipo de composição, adotando indistintamente valores de modelos tidos como paradigmáticos. Os argumentos estéticos, nesse caso servem para encobrir, em primeiro lugar, a evidência de que não é em nome da boa Arte que se está falando, mas em nome da preservação de certo lugar sócio-simbólico (que não se resolve facilmente com a distinção entre ricos e pobres, pois a rejeição do Teló, por exemplo, “transcende” as classes), e em segundo lugar, a própria análise estética, que nunca é feita de fato, sendo no máximo substituída por adjetivações que explicam pouco do objeto e muito mais do lugar de fala daqueles que os emite (mal feita, brega, pobre, pouco articulada, repetitiva, grudenta, e outras adjetivações que cobrem de pompa e sobriedade o vazio argumentativo). Não que se esteja aqui caindo na também equivocada postura do pseudo-especialista, que cobra do ouvinte um discurso especializado (sempre nos termos da música Ocidental), estabelecendo uma equivalência duvidosa entre domínio de jargão técnico e conhecimento de causa. No caso da canção, esse objeto híbrido localizado entre necessidades práticas e estéticas da linguagem (Luiz Tatit), nada mais equivocado que tal exigência pela exploração de apenas um dos pólos. O ouvinte médio não precisa do especialista para entender os mecanismos de funcionamento da canção – bem diferente do que se passa com o discurso literário, por exemplo. A crítica no presente caso não está reivindicando um maior rigor “científico” na análise do objeto. Ao contrário, o que se cobra é que se assuma claramente que questões formais, nesse caso, ficam em segundo plano, para evitar justamente que julgamentos morais e políticos assumam a máscara de considerações estéticas imparciais.

5 comentários:

  1. Caramba, se eu tivesse conhecimento e tempo teria dito algo parecido. Sinto um desconforto produndo com as críticas vazias ao novo sertanejo, ao pagode e ao funk, embora eu não goste desses estilos musicais, me irrita profundamente essa crítica sistemática.

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  2. Valeu Luisandro. Pois é, incomoda mesmo, porque tem muito mais coisas por trás de um simples juízo estético...

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  3. Velho, acabei de ler o seu extraordinário artigo do Michel Teló e do xerife Rodas. Realmente muito bom. A propósito, pensei no livro da Maria Rita Kehl, o 'Ressentimento', para tentar fazer uma arqueologia dessa estrutura neo-fascista. Engraçado que por mais que essa tecnologia de poder nefasta seja nuclearmente da política paulista, o seu maior expoente cultural-imaginário se mostrou no Rio de Janeiro. Até então, poderíamos pensar que se tratava da impossibilidade de materializar essa política, torná-la visível e palpável em São Paulo, como se essa política só conseguisse a visibilidade máxima através do "modelo" do Rio, por décadas ele também uma vergonha nacional - mas que nunca deixou de seduzir o olhar estrangeiro, daí o elemento de 'complexo' interno, da sua análise do Michel. Mas não seria o caso de pensar então que quando da "traumática" invasão do Crusp no final do ano passado, com os seus helicóptero e 400 soldados, não estaria a própria realidade paulistana tentando 'realizar' o seu Tropa de Elite? Nesse sentido, a questão talvez pudesse ser formulada em 'como poderíamos realizar um Tropa de Elite 2', que espécie de ação cultural São Paulo poderia ter a força para mobilizar e de certa maneira reverter o quadro vigente? Nós estamos devendo um revide, um Tropa 2, e espero que melhor que o do cinema, se vc bem me entende...

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  4. o.. valeu César. Preciso ler esse livro da Maria Rita... e é interessante pensar nessa articulação São Paulo-Rio, tão diferentes e que, ao mesmo tempo, parecem se encontrar em algumas coisas. Pra fazer o Tropa 2 real, a gente ia precisar que algum reacionário mudasse de lado. Quem tem potencial para ser o nosso capitão Nascimento esclarecido?

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  5. Um primeiro passo já foi dado por vc: assumir e dar a devida seriedade para o fato de que a nova direita está a frente - bem a frente - da esquerda, que só se preocupa em estar "bem na fita", em não sujar suas mãos, manter a consciência limpa - enfim: ser uma Bela Alma hegeliana. Um segundo dá pra arriscar: fazer uma investigação das razões do porquê da direita ter saído do armário, do porque ela agora estar assumindo publicamente o seu horror, e não apenas o praticando, o que é um diferença que faz toda a diferença, pois reconfigura todo o campo da normalidade e do concebível, do aceitável. Enfim, passa pelo fim da hegemonia cultural da esquerda no Brasil e no mundo - salvo que no mundo, se não me engano, o que parece estar se delineando é um fim do fim da hegemonia de esquerda. Prova de que um descompasso Brasil-Mundo ainda é paupável, em visível paradoxo com uma era em que todos teoricamente podem se comunicar com todos.

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