sábado, 14 de abril de 2012

“Ai se eu te pego meu reitor”: Michel Teló, xerife Rodas e o recrudescimento do conservadorismo nacional (parte II)

Michel-TelóSou feio mas estou na moda, afirma cantor em entrevista para Folha

Entretanto, o caso de rejeição de Michel Teló permite traçar ainda outras considerações sobre o atual momento que vive a sociedade brasileira. Um momento em que certa ética de ressentimento generalizado é mobilizada em nome de uma guinada à direita que tem trazido conseqüências cada vez mais nefastas, como o aumento dos chamados grupos de ódio, o ataque direto a diversas minorias, com ênfase nos homossexuais, a repulsa imediata de movimentos de contestação social de qualquer ordem, seja uma greve de professores, uma passeata de estudantes ou um simples passeio noturno de bicicleta, a perda dos limites éticos entre piada e pura violação dos direitos em determinados programas de humor, etc. É claro que a sociedade brasileira sempre foi profundamente conservadora, não sendo possível afirmar que o momento atual o seja mais que os anteriores. Mas é possível observar um movimento mais ou menos conjunto de recrudescimento da direita em diversos níveis da opinião pública, e uma desfaçatez cada vez mais declarada de adotar a perspectiva conservadora como algo decididamente positivo, ou mais engraçado, jogando por terra todas as últimas conquistas em sentido contrário. Como se o sucesso estrondoso do capitão Nascimento (e não estou culpabilizando o filme por captar esse movimento da sociedade) houvesse exorcizado todos os fantasmas e a sociedade pudesse, sem culpa, vomitar todos os seus preconceitos e desejos obscenos para cima do Outro, afinal, vivemos numa democracia onde impera a liberdade de expressão. Esquece-se que a liberdade de tudo dizer desvinculada de conseqüências éticas para o que foi dito implica que, em algum lugar sob o nosso discurso, existe alguém amordaçado.

Pensando esse movimento em termos de separação de classes, é aparentemente mais fácil criar uma teoria explicativa redutora para dar conta do processo. Os ricos do país continuam sofrendo de horror aos pobres – patologia de matriz colonial com conseqüências nefastas – e rejeitando toda manifestação que não passe pela clivagem de uma lógica paternalista. O tom cada vez mais desabusado e, por vezes, criminoso, da revista Veja, é expressão perfeita desse movimento, que coincide com a guinada do neoliberalismo para uma política mais “social” nos anos do governo Lula. A classe média, por assim dizer, – acostumada com o apagamento do Outro - teve uma overdose de pobreza – considerando isso dentro de todos os limites, evidentemente - e se apavorou. Dessa perspectiva, a rejeição de Michel Teló é facilmente compreensível, e se enquadra no mesmo movimento de exclusão de artistas como Waldick Soriano, Nelson Ned, Fábio Júnior e gêneros como o bolero, o tecno brega e o funk carioca. Evidentemente que o movimento foi um tiro no pé em termos políticos, uma vez que os discursos sociais se fortaleciam a partir do contraponto com uma direita claramente assustada com a ameaça vermelha. Os índices de aprovação de Lula e a eleição de Dilma são apenas a ponta do iceberg.

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Eis o perfil de quem perigosamente, segundo a Veja, teria o poder de decidir a eleição a favor de Lula. Detalhe que a revista diz que a “Nordestina” tem 27 anos, quando o título de eleitor dela diz que tem 30. Para que essa distorção, descarada, na capa?


Entretanto, a questão se complica quanto começamos a perceber que os discursos de rejeição de Michel Teló - apesar dos índices de venda continuarem altos em ambas as esferas sociais - também tem sido elevados entre as camadas populares, aumentando proporcionalmente com seu sucesso no exterior. O esquema lógico armado no parágrafo anterior acaba desabando, ao menos que se elabore alguma teoria estapafúrdia de total coincidência de interesses entre as classes, em que todos adotam, em comunhão, a mesma escala de valores. No entanto, em certo sentido, é justamente esse o imbróglio a se resolver, pois a ação efetiva nos dois pólos é, de fato, coincidente. A solução do problema é aparentemente simples em sua enunciação: o que as classes desfavorecidas rejeitam em Teló não é a mesma coisa que as elites. O complicado no caso é compreender no que consiste, exatamente, essa coisa, e de que maneira desse antagonismo é possível surgir certa “conciliação” que está na base do recrudescimento direitista em todas as camadas sociais, que passam a considerar com simpatia movimentos profundamente conservadores – por exemplo, o massacre de um cantor que não se enquadra no cânone, sempre estabelecido de cima para baixo, mas que não deve ser contestado. Ou a ostentação de gestos e posturas homofóbicas, vistas com simpatia. Novamente, não é que a sociedade se tornou mais conservadora. Mas é como se o conservadorismo tivesse se tornado mais desabusado. Soltaram as bruxas.

Acredito que o fundamental aqui é que, independente do ângulo de observação, o autor de “Fugidinha” continua sendo o Outro. Não há uma identificação em nenhuma das esferas sociais – sempre pensando da perspectiva daqueles que criticam o cantor. E aqui acho que cabe uma comparação algo abrupta - mas que tenta tirar vantagem desse salto - com os acontecimentos recentes na universidade de São Paulo. A USP é, sob muitos aspectos, uma instituição conservadora, mantendo-se muito aquém de transformações importantes no cenário universitário atual, como a discussão sobre cotas, a reformulação profunda do sistema de ingresso, entre outras coisas. Ainda assim, tem uma forte tradição de debates e de força política estudantil de esquerda – a coincidência entre uma postura excludente e a produção intelectual à esquerda é, por sua vez, um dos principais nós não só da universidade, mas da própria intelligentia crítica nacional, razão maior de sua eterna crise, e responsável direta pelo fenômeno Rodas. O reitor atual dessa universidade é o senhor João Grandino Rodas, que foi louvado pela revista Veja como o xerife que a universidade precisava, aquele que apareceu para colocar ordem no circo, fazendo parte da mesma estirpe de figuras como Jair Bolsonaro, Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo. A imagem de xerife é bem escolhida, pois aponta a truculência e o despreparo dessa figura para lidar com quaisquer tipos de problemas da universidade, consistindo sua principal função a de ser pau mandado direto do governo do estado (sua nomeação foi totalmente arbitrária), impedindo qualquer manifestação contrária aos rumos desse modelo político falido. Criminalização de movimentos sociais de estudantes e funcionários, abolição de todo debate, fechamento cada vez maior dos espaços públicos, gastos indevidos e suspeitos, punição para os que tentam contestar quaisquer das arbitrariedades, relações direta com uma policia com suspeitas de ligação com o PCC. Enfim, tudo o que de melhor há na história cheia de máculas da universidade é enfim jogada no lixo pelo grande xerife que não tem o menor peso na consciência. Entre outras coisas, por uma razão bem óbvia, que foi a grande sacada da direita paulistana nos últimos tempos: a opinião pública está ao seu favor.

Que a elite mais estúpida apóie nosso Clint Eastwood tabajara não causa389_rodas nenhum espanto. Afinal, o xerifão está defendendo diretamente os seus interesses, tornando a universidade um lugar mais “digno de respeito”. Agora, como acontece com Teló, o xerife Rodas tem apoio não só das elites, mas do grosso da população, inclusive dos principais prejudicados por sua política. O episódio chave desse processo, até onde consigo perceber, foi o violento ato de desocupação da reitoria em 2007, quando a tropa de choque entrou na Universidade para retirar os estudantes que tentavam negociar, sem sucesso, com seus representantes (ainda na gestão anterior). O ponto central nesse processo foi o apoio absoluto da opinião pública, todos aparentemente afinados com a lógica Datena de tratar questões sociais como caso de polícia. Creio que foi a primeira vez que todos os envolvidos se deram conta de que os interesses da sociedade eram opostos aos interesses da universidade, principalmente daqueles que lutavam em nome do “povo” marginalizado. Logo depois veio o Tropa de Elite I, que é a mais brilhante formalização sobre essa mudança de ânimos – e por isso, a meu ver, é a obra cinematográfica brasileira mais significativa dos anos 00, por captar todo um espírito de época. Quer dizer, a percepção de que há um abismo entre as reivindicações dos estudantes e os interesses da sociedade existe desde o surgimento do movimento estudantil. Mas essa foi talvez a primeira vez que a população tinha satisfeita a sua necessidade sádica de desforra, de revanche, expressando claramente o desejo de não querer ser representada, com a consciência profunda da impossibilidade dessa representação, que nunca se deu, a não ser como promessa.

Acredito que esse episódio é paradigmático na compreensão daquilo que a direita enfim aprendeu nos últimos tempos. O modo como o ressentimento de classe pode ser mobilizado não para um desejo de transformação social, uma mudança profunda no modo de relação entre as classes, mas em sentido contrário, na defesa feroz da manutenção atual dos papéis. A percepção, profunda e correta, é a de que os estudantes que ocuparam o prédio da reitoria em nome de uma causa a princípio justa só podem fazer isso por conta de seu privilégio de estar na USP. A ética do ressentimento apaga então as razões do movimento (uma efetiva necessidade de transformação) para se concentrar nas condições presentes de produção do gesto (o privilégio de classe). Pois se a gigantesca multidão de desprivilegiados do país não pode sequer pensar em fazer algo parecido (na melhor das hipóteses, só apanham e vão presos) – não podem mas fazem, haja vistas os inúmeros e crescentes movimentos de ocupação rural e urbana - e haja vista que aquele movimento dos estudantes, no limite, não se reflete nos interesses dessa população (independente das intenções dos agentes), tudo o que resta é a exposição desse privilégios, no momento mesmo em que se luta para eliminá-los. Nesse momento, basta a direita inverter o foco do discurso: não é mais o pavor dos pobres que os move, o desejo de fechar cada vez mais aquele espaço público, mas um desejo de democratização da violência, onde todos, ricos e pobres, devem se submeter ao estado de coisas atual, sob pena de ser punido violentamente da mesma maneira. I have a dream.

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Essa foi a verdadeira carta branca para o xerifão, que tem, entre outros privilégios, o apoio total do governo do Estado e uma polícia toda para si. Quem quiser reivindicar algum direito pode ser preso ou ser mandado embora por justa causa. Enfim, todas as arbitrariedades do setor privado e que já é realidade para a ampla maioria da população há muito tempo. A questão é assim invertida: ao invés de se lutar para que os privilégios da USP se estendam a todos, de modo a deixarem de ser privilégios e passarem a condição de direito, a cobrança é para que aquele espaço se subordine totalmente a lógica de precariedade que reina absoluta. O que se exige é uma espécie de nivelamento por baixo, muito por conta da consciência de que as coisas têm sido assim há muito, muito tempo.

Dessa maneira, exige-se que os manifestantes sejam punidos porque, ao invés de aproveitar a oportunidade de ficar estudando 12 horas por dia como nos mitos correntes sobre estudantes exemplares, ficam fumando maconha, fazendo baderna e impedindo as aulas. Ignora-se a legitimidade do que é reivindicado para comprar totalmente um discurso que, no limite, tende a acabar com a possibilidade de sequer se pensar em um modelo efetivamente democrático de universidade pública. Da mesma maneira, acredito que Michel Teló (opa, voltamos) representa também esse mesmo esquema do elemento que escapa ao controle e é rejeitado como ilegítimo. Afinal - para colocarmos as coisas de maneira bem direta - porque ele, tão simpático e tão clarinho, vai fazer essa porcaria de música de empregada? Ao invés de se colocar no seu lugar junto com a MPB ou a música alternativa, vai fazer música ruim? E ainda mostrar pra todo mundo? Levar essa imagem para fora do país consiste em crime da maior gravidade. De um lado, rejeita-se todo o estilo musical, e junto com ele, a ralé que lhe deu forma. De outro, rejeita-se mais a figura do bom moço que parece ocupar um lugar ao qual não deveria pertencer, fugindo do papel que lhe seria reservado. Ao fundo, a sensação incômoda de que Teló deve seu sucesso ao adjetivo universitário (artista\maconheiro\desviantes) que qualifica o seu sertanejo. Assim sendo, ele não deveria fazer o sucesso que fez, da mesma maneira que todo mundo, em seu estilo, não faz, a não ser como o lixo que é. Destacar-se sem o apadrinhamento dos poderosos é um grande risco – curiosamente, inclusive nessa rejeição posterior ao sucesso mundial segue valendo a comparação de Teló com Carmem Miranda: em ambos os casos não é a qualidade estética que está em jogo, mas a adequação aos padrões do que deve e do que não deve ser valorizado - e a vingança dos outros desapadrinhados é cruel. A narrativa é breve: o cantor não recebe as bênçãos da Comissão Defensora da Moral e Bom Gosto Estético, condenado por partilhar uma linguagem rebaixada que revela uma parcela ignorante, vergonhosa e desdentada da sociedade. Na sequência, essa parcela social que não rejeita o estilo e poderia ver no sucesso do cantor (ou na luta dos estudantes) a confirmação de seus padrões realiza o movimento oposto, e passa a considerar o sucesso do rapaz (da ocupação) como privilégio ilegítimo, por não se filiar diretamente aos interesses de certa camada do poder. Assim como os “maconheiros” da USP, que muito provavelmente também não irão gostar muito de serem comparados com o Michel Teló.

O ressentimento acaba unindo os pólos opostos bem demarcados da sociedade brasileira, ainda em detrimento do lado mais fragilizado - embora, sob muitos aspectos, mais forte. Existe outro famoso momento da história em que os impulsos conservadores da elite e do povo foram catalisados em torno da eleição de um bode espiatório. Judeu, no caso. Por enquanto, parece que essa simpatia conservadora se concentra, sobretudo, no sudeste, em especial na política paulistana. Ainda assim, é motivo para preocupação, uma vez que nenhuma conseqüência positiva pode sair desse estado de coisas que vem se sustentando.

04 \ 2012

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