terça-feira, 2 de novembro de 2010

A EXPERIÊNCIA DE ASSISTIR METRÓPOLIS COM ORQUESTRA

A experiência de assistir a um clássico do cinema mudo com acompanhamento ao vivo, remetendo à experiência cinematográfica de tempos passados nesse caso valeu mais pela projeção do filme em tela grande do que pelo aspecto musical. Não digo que esta de nada valeu. Valeu sim, especialmente por seu caráter de fetiche, a busca por uma experiência cinematográfica mais autêntica, tal qual vivenciada nos cinemas de antigamente, bem ao gosto pós-moderno de reatualização descafeínada da história. Isso sem falar que participar de uma sessão ao ar livre de um filme cult acompanhado por uma orquestra sinfônica é o suprasumo da “elevação” espiritual e bom gosto\nível sócio cultural – capital simbólico de sobra, o que não é pouca coisa e pode decidir eleições. Quanto à experiência em si, pode-se dizer que depois de alguns minutos o expectador nem sente mais a diferença entre o acompanhamento com orquestra e aquele que estamos acostumados no DVD, tornando-se óbvio do porque daquilo se chamar música de acompanhamento – algo semelhante acontece quando vamos assistir a algum filme em 3D, e após alguns minutos o seu cérebro deixa de apreender aqueles efeitos enquanto novidade, o que inevitavelmente acaba retirando um pouco da graça do esquema, caso o barato do filme seja exatamente o “efeito pelo efeito”. A execução da partitura pela orquestra não ocupa o primeiro plano e, caso o ouvinte mantenha nela sua atenção, é provável que se sinta desapontado, pois a partitura não é assim tão boa – tem uns jazzinhos aqui, outra coisinha ali, mas nada de mais. Acredito que seria melhor para o filme se o som de acompanhamento fosse algo mais experimental, futurista. Não algo radical como atonalismo ou música serial – ninguém merece 3 horas de atonalismo - mas alguma coisa caída para um Varèse, ou Shostakovsky.
Mas, se a novidade da orquestra não é lá tudo isso e desaponta um pouco pelo exclusivismo, a experiência cinematográfica por sua vez vale muito a pena: tudo em Metrópolis é grandioso e monumental. Sua produção durou quase um ano e meio e envolveu cerca de trinta e sete mil figurantes, sendo o maior orçamento na Alemanha até então. Além disso, seu fracasso foi tão estrondoso quanto sua ousadia, e o filme passou longe de obter o sucesso de bilheteria esperado, levando a produtora Universum Films, quase à falência. Sem dúvidas que isso se deve muito ao alto grau de ambição do projeto. O filme sobrepõe camadas múltiplas de significação, operação que pode parecer ao espectador atual bem evidente, quase didática, mas que na época deixavam o desenvolvimento da narrativa bastante truncado. Além do que, diz a lenda que o original possuía mais de 3 horas de duração, tempo extenso mesmo para os padrões atuais. O filme ainda investe em outras camadas de estranhamento, como o visual não realista, nos moldes do expressionismo, e em tomadas pouco usuais, próprias de uma época em que os caminhos cinematográficos não estavam ainda tão demarcados.
No geral, o esquema básico do enredo pode ser definido como uma boa ficção científica político-cristã. Aliás, é a mistura de ambas as dimensões, a política permeada por alegorias cristãs e seu imaginário infernal - o reino subterrâneo das máquinas e dos trabalhadores é o tempo todo relacionado ao inferno - que propicia alguns dos melhores momentos do filme, como a cena de dança bem psicodélica de Maria\Andróide, simbolizando um ritual de submissão à luxuria, ou a cena de acidente dos trabalhadores, em que a máquina é convertida na representação de um Deus pagão.
O filme é bastante longo (mesmo mutilado e com seqüencias perdidas) e seu início, centrado no entrelace amoroso entre o mocinho filho do empresário capitalista malvado (Freder) com a doce Maria, liderança espiritual dos operários cuja função é pregar a paz cristã e social, é bastante arrastado. Centra-se muito no padrão romance romântico água com açúcar, importante para o desdobramento posterior, mas que hoje em dia seria bem mais dinamizado. O filme porém vai ganhando em dinâmica na medida em que a tensão entre trabalhadores do subterrâneo x elite vida mansa se acirra, a tal ponto que a sequência final de destruição da cidade ainda hoje pode servir de paradigma para filmes-catástrofe, sendo bem melhor que muitas películas de destruição e desastre atuais. A longa sequência final lembra inclusive o mega blockbuster de qualidade duvidosa Titanic, e seu longo plano final de naufrágio. O filme de Fritz Lang consegue ser superior a este pelo uso de soluções de planos inusitados e técnicas que fogem ao padrão realista de representação, trabalhando com outros pólos de tensão e significação que o tornam mais dramático e estéticamente interessante. Os angustiantes e brilhantes cenários e tomadas expressionistas comparecem no filme com toda força, garantindo a permanência de algo de seu impacto.
Para além desses pontos de interesse mais formais, o filme apresenta, do ponto de vista ideológico, algumas complicações de grande interesse histórico, ao sustentar como meta uma perigosa aliança social democrata, risco mais claramente apreendido se tivermos em mente que a película chega aos cinemas em 1936, perigosamente próxima pois da emergência do nacional socialismo alemão, cujo padrão discursivo também apoiava-se na defesa de um elemento mediador entre proletariado e grande capital. Nas célebres palavras que fecham o filme e conduzem seu enredo: “O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração”. Pode ser também um certo Adolfinho, por que não? Tanto que, após assistir ao filme, Hitler convidou Lang para ser o cineasta oficial do regime. O católico filho de mãe judia Lang se recusou e foi pros EUA. Circula inclusive por aí, à boca pequena, que na verdade o final tal como conhecemos desagradava o diretor , sendo obra de sua mulher, esta sim nazista assumida. Por algumas razões essa solução que facilitaria imensamente uma análise ideológica mais chapada é de difícil aceitação. A solução conciliatória, por exemplo, é construída desde o início do filme, e não apenas no final. Além disso, a personagem mais malvada, feia, boba e terrível do filme, o diabo encarnado, é um cientista maluco judeu - Rotwang - que tem em seu laboratório uma estrela de David, ousa brincar de ser Deus e, o que é pior, quer desvirginar a virgem Maria.Ora, que ato pode ser mais definitivamente malvado do que desvirginar a própria Virgem Maria? A Virgem – mãe de todos! Inferno nele. A crítica ao capital empreendida pelo filme não tem origens socialistas, mas nacional-socialista, mais próximo do nazi-facismo, que retoricamente também fazia severas críticas à exploração do homem pelo capital.
Curioso pensar também que seria essa a ideologia do filme caso fosse filmado no Brasil contemporâneo, com a diferença de que o comportamento agressivo bestializado dos pobres não seria representado, dando espaço a uma figuração mais positiva, e algo paternalista. É o que acompanhamos nos inúmeros filmes de temática social adocicada, indicativos da permanência do desenvolvimentismo entre nós, mesmo que apenas em nível estético, talvez já como anacronismo. Mas aí já é outra questão. O que vale é que a ficção futurista de Lang (que não é a sua melhor obra) faz juz em permanecer como um marco na história da sétima arte, seja por seus pontos imediatamente positivos, seja por suas ambigüidades – como a sempre complicada questão de saber se uma obra estética ideológicamente reacionária pode ter valor artístico.

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