quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Os fantasmas de Jorge Ben (II)



LEIA TAMBÉM (PARTE I) e (PARTE III)

Segunda fase (1969-75) – O acerto de contas consigo próprio
O disco de 1969 (Jorge Ben – 1969) aparece como obra de um autor completamente amadurecido e que domina com absoluta maestria uma linguagem que é só dele. Muito dessa maturidade com certeza se deve ao espírito tropicalista de exaltação da heterogeneidade. Jorge Ben não precisa mais se enquadrar, a partir de agora basta ser, e ao assumir a indefinição, se define. O flerte com o movimento vem desde a capa, bem ao espírito da época,e as referências nas letras são inúmeras, tanto em alguns temas quanto nas citações diretas (o samba rock psicodélico “Barbarela”). Os arranjos também seguem o espírito da tropicália, tecendo comentários à canção ao invés de encobrir, e as melodias estão mais soltas do que em todos os outros momentos anteriores, permitindo combinações harmônicas e rítmicas de uma originalidade historicamente sem precedentes e sem pontos de comparação. Para completar, o próprio Duprat assina o arranjo em duas das composições, “Barbarella” e “Descobri que sou um anjo”. As demais composições são arranjadas de forma extraordinária por José Briamonte. As letras por vezes mal cabem no interior das músicas, levando ao limite a desconexão da MPB. Com isso, ele pode unir as dicções que bem entender, miturando, samba, rock, gafieira, macumba, etc... O acerto de tonalidade e matiz que havia sido conquistado no terceiro disco, com os arranjos procurando acompanhar as sugestões do ritmo, ao invés de enquadrá-lo, retorna nesse com espírito diferente. De novo, Jorge Ben está mais Jorge Ben do que nunca. Aparecem as cordas, que irão acompanhar toda essa fase, a batida de violão tocado como guitarra se consolida, o samba cantado num andamento que o coloca entre a gafieira e o rock, e que ele descobriu a partir da aproximação com a Jovem Guarda. Além disso, é nesse disco que se dá o encontro com o Trio Mocotó, a banda que ajudou a consolidar o que se chamaria de samba rock, e com os Originais do Samba (aquele, do Mussum). Em suma, o resultado é de novo um dos maiores momentos da música brasileira, agora não mais como uma bomba de um artista absolutamente diferente de tudo que surgiu, mas como um mestre com total domínio de sua arte.
As obras seguintes mantêm o mesmo nível desta, sendo todos grandes discos. Jorge finalmente encontrou a forma de estruturar suas canções, muito porque a Tropicália forçou que os arranjadores encontrassem formas originais de estruturar canções originais, além de ter encontrado o grupo certo para o acompanhar. Mesmo que este tenha saído de cena logo, ajudou a definir o tipo de som que deveria seguir, ao menos até a fase mais pop da Banda do Zé Pretinho. Todos os discos desse período (Força Bruta, Negro é Lindo, Ben, A tábua de esmeralda, Solta o Pavão) encabeçam nem que seja um grande sucesso e podem ser classificados como geniais, sem dúvida um dos momentos mais fascinantes da música brasileira.
Força Bruta” (1970) segue na linha do anterior, com acompanhamento do Trio Mocotó. No geral é mais suavizado, afinal o anterior é o primeiro dessa estética nova. Os arranjos em minha opinião aparecem menos inspirados, ainda que excelentes, o que não se estranha pois a Tropicália de fato tem nos arranjadores um dos seus pontos principais. Mas as composições de Jorge se sustentam tranquilamente por si, e o disco comporta algumas obras primas, como “Charles Jr” e “O telefone tocou novamente”.
Negro é lindo” (1971) é um disco pesado (“Cassius Clay” é uma porrada violenta no queixo) e maravilhoso que traz algumas mudanças bastante significativas. O Trio Mocotó deixa de acompanhar o cantor para ganhar vida própria. Os arranjos ficam por conta de Arthur Verocai, que adiciona novos elementos aos já então tradicionais, mudando um pouco a tonalidade com relação aos anteriores. E talvez o que seja a mudança mais importante: surge uma nova batida de violão, sem que as outras fossem abandonadas. Percebam a diferença de canções como “Rita Jeep” e “Comanche”, mais duras e próximas do chamado samba rock, para “Maria Domingas” e “Palomaris”, visivelmente mais próximas de um samba funk. A proximidade com a Black music, já expressa no título do disco e presente desde o início de sua carreira se estreita ainda mais. É o início da jornada que irá culminar com África Brasil. Muitas vezes o que vemos é uma alternância dos registros em uma mesma música a partir da batida do violão, que garante sua homogeneidade. O compositor está aqui absolutamente livre e no melhor momento de sua carreira. É nessa fase que Jorge arrisca mais, atingindo em muitos momentos um domínio estilístico extraordinário. Esbanjando inclusive lirismo, como em “Que Maravilha”, talvez seu momento lírico mais bem sucedido, desde “Chove Chuva”.

“Ben” (1972) é um desdobramento do disco anterior. Jorge Ben de Black Power cai com tudo no movimento black is beautiful da época. A base harmônica grooveada do disco anterior dá o tom das composições, e Jorge se movimenta com tranqüilidade pela Black music mix de samba com maracatu, segundo suas próprias palavras. Sem abandonar ainda seu lado mais rock, ou a pegada mais blues. Muitas vezes tem-se a impressão de que a base, no geral com duas notas tocadas insistentemente no mesmo groove, serve como ponto de apoio para Jorge desfiar seus discursos, por momentos parecendo quase com falas, radicalizando o processo que tomou forma no disco de 69 (“Bebete vambora”) e que seria explorado genialmente do outro lado do hemisfério por James Brown. É outra forma de aproximação com a ritualística negra presente nos rituais afro-brasileiros. Jorge se torna quase experimental em alguns momentos, levando a canção ao limite do discursivo, sem refrão e parecendo um longo improviso (processo que culminaria no extraordinário “Gil e Jorge”). Em outros, ele funda sua própria psicodelia, como em as “Rosas eram todas amarelas”.
Finalmente, o disco que quase não sai (ninguém acreditava em um disco que versasse todo sobre o tema da alquimia), e que é tido por muitos como a obra-prima de Jorge Ben. Eu particularmente os outros tão bons quanto esse, o que não é pouco. Mas dá pra entender as razões da escolha: o disco não tem momentos ruins e traz mais de um hit. A tábua das esmeraldas” (1974) tem um tema absurdo, mas a música de Jorge também é, apesar de ser um absurdo que todos reconhecemos facilmente. As letras são colagens quase surrealistas, envolvendo latim, alquimistas herméticos e a causa negra, mas ao mesmo tempo absurdamente próximas – falam de futebol e mulher. Traduz o espírito brasileiro com perfeição, materialista e profético, simples e sofisticado, espiritual e canalha. A sonoridade do disco tem uma cara mais leve, com clima de banda, já presente no disco anterior. Ficou mais fácil tocar Jorge Ben. Também tem algo de síntese, estão lá bem mesclados o lado mais doidão do cara, com suas melodias inusitadas e inimitáveis, como em “Hermes Trismegistlos”, em que a letra é um texto do século XIX (tente acompanhar a melodia, é pior que tentar acompanhar João Gilberto). A temática negra, feminina, a aproximação mais direta com o Black (“Brother”, musica gospel em inglês, que mostra o quanto o cara é um melodista extraordinário, capaz de fazer qualquer coisa), o samba rock e o samba funk e até o sambão mais tradicional. Tudo na dose certa, parecendo a coisa mais simples do mundo. Muito do que existe atualmente se explica por esse disco. De fato, assombroso.
“Solta o Pavão” (1975)É definido por Jorge como uma continuação da Tábua. De fato segue a mesma linha e tem o mesmo arranjador Osmar Milito, assim como as referências históricas, as melodias invocadas. Continua o clima de espiritualismo hippie pagodeiro. Ou seja, a fórmula do disco anterior se repete. A banda Admiral Jorge V (cujos integrantes formariam a base de A Cor do Som) aqui ganha um destaque ainda maior, no que seria a gênese do estilo Zé Pretinho, embora aqui feito com criatividade. Algumas melodias soam mais pobres que as do momento anterior, outras no mesmo nível de seus momentos mais geniais. Mas ele continua caminhando livremente pelas mais diversas esferas com competência, e nem de perto se aproxima da pobreza dos discos dos anos 80. Tem a antecipação do África Brasil e o encontro definitivo com James Brown anunciado na magistral oração a Ogun “Jorge de Capadócia”. O espiritualismo fez bem a Jorge Ben, como fez a Tim Maia, por coincidência na mesma época. E tem canções deliciosas, como “Jesualda” e outras mais complexas, como a que fala de “Tomás de Aquino”.
Depois, um disco que não é de inéditas, mas que entra aqui por ser um experimento radical e muito ousado. “Gil e Jorge – Ogum e Xango” (1975) Dois violões, baixo e percussão, em improvisos de até 15 minutos, gravados de uma só vez em uma madrugada. Como dar certo? Simples, junte os dois dos violonistas mais criativos da história da MPB, no melhor momento de suas carreiras. O Gil era aquele que iria gravar o fenomenal “Refavela”, e que tinha acabado de gravar um dos maiores registros ao vivo da MPB, no Tuca. O Jorge Ben era esse que estamos vendo. Ambos tiveram de criar um estilo próprio de tocar para dar conta de seu talento, ambos são inimitáveis e possuem a habilidade raríssima de unir linguagens heterogêneas em uma forma nova e orgânica. Ambos têm uma confessada admiração mútua. Em suma, um encontro de gigantes, uma viagem a qual se embarca com muito prazer. Mas esse é um registro de livre improvisação que não foi feito com intuito comercial, diferente da obra de estúdio desses dois gênios, feita para ser vendida. Portanto, é o disco mais explicitamente “experimental” de suas discografias, sendo por isso mais difícil. E que vale muito a pena. E com esse experimento encerramos a fase áurea de Jorge Ben e da MPB.

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