quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Os fantasmas de Jorge Ben (I)



LEIA TAMBÉM (PARTE II) e (PARTE III)

Jorge Ben – Primeira Fase (1963-64) – O Fantasma de João Gilberto

Jorge Duílio Lima Meneses desponta no cenário musical brasileiro como um cometa. Ou uma bomba. É dessas figuras que não tem sentido e sob a qual nenhuma explicação racionalista consegue lançar luz. Seu aparecimento é ao mesmo tempo uma ruptura com tudo o que havia sido feito até então, e uma fusão de todas as coisas, até certo ponto mais radical do que o projeto Tropicalista, porque mais orgânico e espontâneo, menos programático.
Ninguem entendeu aquele som novo que surgiu em 1963, feito por um garoto carioca que havia começado tocando pandeiro em um grupo de samba, depois passado para guitarra em um conjunto de rock, e finalmente, cansado de reproduzir os estilos dos outros, criando o seu próprio. Ou melhor, todo mundo entendeu – o disco de estréia de Jorge foi um dos maiores sucessos dos anos 60 – mas no nível do conhecimento profundo. O difícil era classificar, enquadrar em alguma categoria racional. Provavelmente nem mesmo o próprio autor entendia bem o que estava criando, e como o fez. Não era um projeto estético, como a batida de João Gilberto. Era mais uma coisa que nasceu assim, que era dele.
A capa do primeiro disco (Samba Esquema Novo – 1963) lembrava a atitude despojada da Bossa Nova, assim como os arranjos samba jazz das canções, criados por J.T Meirelles (do copa 5). O próprio Jorge reconhecia sua filiação com a Bossa – nessa fase chegou mesmo a gravar uma composição do João Gilberto. Aliás, não é exagero dizer que a Bossa é em grande medida responsável pelo surgimento de Jorge Ben (assim como de toda MPB), que representa no entanto um passo além em relação a esta. A principal contribuição da Bossa para a música popular foi ter liberado a canção das delimitações fixas de gênero, forçando cada uma das composições a encontrarem modos de representação próprias, possibilitando assim a mistura criativa de diversos elementos heterogêneos, sempre a partir de um olhar racionalizante. Mas como a Bossa estava presa ainda a um projeto nacionalista – que depois se tornaria nitidamente ideológico com a canção de protesto – de definição do caráter nacional brasileiro, acabou se tornando ela mesma um gênero, ainda que feito para acabar com todos os demais. O passo além de Jorge foi desestabilizar o último alicerce que faltava, transformando a base do samba em alguma outra coisa, somente definível em relação a cada composição.
De qualquer forma, o Jorge se identificava como herdeiro da Bossa, seja pela predominância do violão, por alguns temas, pelo estilo do canto - uma espécie de João Gilberto cantarolando Beatles num terreiro - apesar da consciência de ser também outra coisa. Ouça o final da gravação original de “Mais que nada”, em que ele faz primeiro vocalizações típicas da Bossa, e depois muda para um falsete que conduz para outro lugar, provavelmente uma gira de umbanda. O público também sentia a mesma coisa. Ele foi o único cantor a se apresentar tanto no Fino da Bossa quanto no programa Jovem Guarda.
Nessa primeira fase de Jorge Ben, a definição samba-rock não ainda muito sentido, tendo surgido posteriormente, embora sirva para marcar bem o lugar excêntrico que ocupava o compositor no cenário da música brasileira. O som de Jorge contém é verdade desde o início ambos os elementos, mas ainda não é disso que se trata, e o mais característico de sua música é precisamente sua indefinição. Como vimos sua música tem Bossa, mas as melodias lembram por vezes o samba, e mesmo esse aparece ora como samba canção, ora como gafieira, ora como o canto mais fundamental dos terreiros de umbanda. Mas em Jorge aparece também o canto negro americano, o Blues, o Jazz (via Bossa “Vem morena, vem”) e o pop. Além é claro, da África, mas aqui não a África de Caymmi, mais fundamental e entranhada, mas a África carioca, explicitando o canto dos escravos que se entranhava no samba. Tinha também rock, mas que rock estranho (“Rosa, menina Rosa”, com arranjos de metais geniais), falando de samba o tempo todo, com arranjo de samba e metal latino.
A linguagem toda própria por ele desenvolvida consistiu na mais radical fusão entre ritmo e melodia já feita, antecipando o que James Brown elevaria a sua potência mais radical, sendo este aliás um dos pontos de contato entre ambos, porque na revolução seguinte operada por Jorge Ben (sim, ele é desses casos raríssimos de personalidades que operam transformações radicais na música mais de uma vez, como Miles Davis, com a diferença que Jorge faz isso no campo do pop, naturalmente mais avesso à mudanças) seu projeto consistirá em encontrar a linguagem funk tupiniquim, um trabalho de transposição que é a operação mais complexa em música popular. E aliado a tudo isso, muito influenciado pelo canto de terreiro (que contem algumas das mais lindas melodias), algumas das melodias mais lindas da MPB estão nesse primeiro disco de Jorge Ben (“A Tamba”, “Uala uala”, “Por causa de voce menina”, “Vem morena”).
Essa indefinição estilística, a razão de ser de sua genialidade criativa, acarretou problemas nos momentos seguintes de sua carreira. Em que categoria enquadrar aquele som para a comercialização. Se no primeiro disco funcionou apresentar ele como vindo de uma linhagem Bossa, nos discos seguintes, participantes daquele acirramento de ânimos que nós conhecemos da época dos festivais, a estratégia não funcionou. Jorge não participava nem do nacionalismo tacanho da música de protesto, e nem da alienação da Jovem Guarda. Portanto, não servia para o consumo, e foi deixado de lado. Contribuiu pra isso, ou acarretou isso – nunca é possível precisar - também a vacilação nos discos seguintes. O disco posterior (Sacudin Ben Samba – 1964) era menos inspirado, os arranjos tentando seguir a mesma linha do anterior já não funcionaram, apesar de serem mais cuidadosos e continuarem a cargo de J.T Meirelles. As melodias, apesar dos bons momentos, não estavam tão inspiradas, parecendo às vezes tentativas de repetição de uma mesma fórmula que ainda não havia sido criada. E por vezes, tentando se enquadrar em um estilo que não era o dele. Em suma, Jorge Ben quis ser tratado como samba jazz, mas seu som não era isso, afinal, ele não era o Simonal, e ficou deslocado.
O terceiro disco (Ben é Samba Bom – 1964) melhorou, e Jorge voltou a criar composições com estilo próprio, indefiníveis, e os arranjos procuraram dessa vez frisar essa indefinição, cada música procurando se filiar a alguma escola diferente, sendo mais ousado. Ele está cantando como nunca, mais impostado e com maior variação, sem tentar soar Bossa (veja a leitura da música de João Gilberto “Oba la la”, que ficou muito passional, semi bolero, muito distante do original) e a base deixa de ser o samba jazz, deixando o compositor livre novamente. Tem rock, Bossa, samba de morro, jazz, umbanda, tudo com arranjos jazzísticos brilhantes que vão atrás do compositor, e não à frente como no trabalho anterior, do mesmo ano, aliás. Possivelmente obra do maestro Gaya, que não ficava tão preso aos esquematismos do samba-jazz tanto quanto Meirelles. Além, é claro, do retorno de melodias inspiradíssimas – a música “Samba Menina” a meu ver é uma obra prima de composição, na insistência da palavra chave samba repetida em contornos melódicos que se alteram a cada estrofe, num perfeccionismo digno da Bossa, só que com muito swing. O resultado é outra obra prima, o disco que melhor capta o espírito criativo do compositor nesse primeiro momento de sua carreira, e que só não obteve reconhecimento por não se enquadrar no cabo de guerra da época.


Transição (1965-67) - Os fantasma de Roberto Carlos e Simonal

O quarto disco (Big Ben – 1965) é simultaneamente o que mais tenta delimitar o som do compositor no gênero samba-jazz, forçando seu estilo a se definir em um rumo que não era o seu (ele era isso também, mas não só), e ao mesmo tempo onde já se reconhece algo de sua mudança para o estilo que finalmente o iria consagrar. Percebe-se uma tentativa de enquadramento seja no swing à moda Simonal, ou o samba jazz, ou mesmo a canção de protesto (“Larai-olalá”). É um dos discos menos Jorge Ben da sua carreira, o que não quer dizer que seja ruim. Mas mesmo essa pressão por definição não impede que Jorge experimente e encontre rumos que desenvolverá mais a frente. Os casos mais significativos são o flerte com a Jovem Guarda em “O homem que matou o homem que matou o homem mau” que ajudará a definir muito de sua estética. A temática livre e lúdica, o violão tocado quase como guitarra, o canto dissolvendo a estrutura da métrica, quase que improvisado, por vezes mais recitação do que canção. E também “Agora ninguém chora mais”, que marca uma aproximação com a Black music, que será central para a sua concepção estética amadurecer, pois é a partir dela que Jorge irá criar conexões inusitadas entre melodia e acompanhamento. Mas é um disco assombrado pelo espectro do sucesso de Simonal e do samba-jazz.
No disco seguinte (O Bidu – Silêncio no Broklin - 1967) finalmente Jorge assume sua figura inorgânica (tem até um manifesto na música “Jovem Samba”, que une a Jovem guarda ao samba), abandonando a sonoridade samba jazz dos arranjos e se aparentando mais como conjunto de samba-rock, aparecendo pela primeira vez a guitarra elétrica e o órgão em algumas música. A banda de apoio que o acompanha é o The Fevers, o que explica a mudança de sonoridade, além é claro do tom das próprias composições. Nesse período ele havia mudado para São Paulo, entrando em contato com os artistas da jovem guarda – chegou a dividir um apartamento com o Erasmo Carlos no Brooklin. E mesmo o título do disco é referência a Jovem Guarda - Bidu é o apelido que ele havia ganhado no programa dos nossos roqueiros. A tentativa visível agora é conquistar o público jovem guarda, uma vez que ele havia sido rejeitado pela turma nacionalista. O resultado novamente é destoante, apesar de algumas ótimas composições. As dificuldades de definição permanecem, porque Jorge Ben não é tampouco um roqueiro. Por isso continuará sem um público até o advento da Tropicália, que privilegiava justamente as sonoridades que não se enquadravam em delimitações rígidas. Mas essa experiência é importante por fazer uma aproximação ainda mais consistente com o ieieie, que será fundamental para o amadurecimento do seu estilo, formado a partir da incompatibilidade estrutural entre o rock e o samba, que o forçará a criar relações melódicas absolutamente originais. Na sequência, quando ele afastar de vez o fantasma do Roberto Carlos (João Gilberto já havia sido expurgado no disco anterior) vai criar uma sequência de pequenas obras primas.
O importante é que aqui Jorge Ben já não é mais um herdeiro da Bossa, ou um sambista diferente, e nem um típico representante da Jovem Guarda, mas uma coisa outra, só possível de ser classificado com um substantivo composto, lembrando que na época a divergência entre samba (engajado e nacionalista) e o rock (alienado e imperialista) era radical.

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