domingo, 3 de agosto de 2008

LONDON CALLING (1979) e o movimento punk.



Nas inúmeras listas para eleger o melhor álbum de rock de todos os tempos, algumas figurinhas tarimbadas sempre dão as caras. Brigando pelos primeiros lugares sempre encontramos o Pet Sounds de 1966, dos Beach Boys - na verdade, de Brian Wilson – algum dos Beatles, o White Album de 68 ou o Sargent Peper’s de 67, e essa pérola do The Clash, London Calling de 1979.
Concordando-se ou não com tais juízos, sempre parciais e algo radical de “o mellhor”, ou “o mais influente”, ao menos é possível entender as razões pelas quais esses álbuns figurem nessas listas em tão alta cotação. O que Brian Wilson fez para o universo do rock equivale ao que Curtis Mayfield e Marvin Gaye fizeram (aliás, não à toa, em épocas bastante próximas) para a música negra com Superfly (1972) e What´s going on (1971), respectivamente. Cada canção é tratada como uma unidade complexa no interior de outra maior, com arranjos belíssimos e pequenas orquestras, em diálogos ricos e precisos com a nova forma pop e corais cuidadosamente elaborados, além de letras e harmonias mais sofisticadas, atingindo um resultado final de grande elaboração e requinte até então inédito nesse tipo de composição. Enfim, esse disco revelava ao mundo toda a beleza e sofisticação de que o rock era capaz, conferindo ao estilo o atestado de maturidade que muitos buscavam na época, tanto na forma quanto nas letras.
Quanto aos Beatles, eles simplesmente perceberam que a base simplificada do rock poderia atuar para o enriquecimento das canções ao invés de empobrecê-la, como costumava acontecer então, bastando para isso que essa base servisse como ponto de partida para aglutinar elementos heterogêneos no interior de uma nova forma original. Estava dado o salto qualitativo mas importante da música pop de todos os tempos, influenciando desde o Krautrock até nossa MPB.
Já o disco do Clash pertence a outro momento. Para começar, é um disco rebelde, mas não revolucionário como os mencionados anteriormente. Isso porque é feito com espírito punk, que é rebelde, mas não revolucionário. Basicamente, porque a revolução abre caminhos, enquanto que o punk os fecha. O grupo surge em meados dos anos 70 no interior desse movimento, após assistir a um show dos Sex Pistols e pensar, como muitos outros, que ali estava a música que iria salvar o mundo de sua auto destruição pela apatia. O punk surge em um período em que a cena rock estava entulhada de rock progressivo e metal sem criatividade. Solos intermináveis, mirabolantes e tediosas progressões harmônicas: naqueles dias para se fazer rock era preciso ter feito faculdade de música. O resultado é que o lado musical da coisa se desenvolvia sem atentar para o outro aspecto da relação, a atitude, responsável por dar vida à parte técnica.
O final dos anos 60 colocou em cena um dos momentos mais criativos da história da música pop em geral, levando-a a desdobramentos musicais até então impensáveis. E para que isso acontecesse, a atitude de seus protagonistas foi tão ou mais importante que sua técnica, bastando uma rápida passagem de olhos sobre a biografia dos gênios da época para se comprovar o fato. Todos se entregaram a alguma experiência radical, seja Beatles, Doors, Hendrix, Led Zeppelin. Mesmo o momento histórico estava carregado de radicalismos de toda sorte, protagonizados pelos diversos movimentos sociais de então. Mas o mais importante é que essa radicalidade vivida em diversos níveis era tornada música, catalizada e convertida criativamente para o formato canção. A lição das vanguardas do início do século era apreendida pelo novo gênero, e a revolta de tornava sobretudo uma questão estética.
Após esse surto mais “sincero”, como é natural, essas descobertas se cristalizaram em fórmulas que foram adquirindo certa rigidez, criando determinados gêneros (quando o barato da psicodelia era justamente quebrar todas as barreiras de gênero). As possibilidades musicais recém descobertas eram muitas, e o rock de então se concentrou nelas, abandonando a atitude que se traduzia musicalmente em criatividade. Contra esse estado de coisas algo inerte, é criado o punk em meados dos anos 70, trazendo de volta a atitude para primeiro plano. O rock saia da academia e era trazido de volta às ruas, para sua agitação e revolta. Entretanto, diferentemente do momento anterior, aqui a atitude (essa disposição para) não se traduzia em criatividade musical. Ao contrário, a atitude punk consistia em certa medida no abandono da criatividade, na separação de atitude e música. Quanto menos música, mais atitude. Como bem simbolizado pelo símbolo maior do movimento, os Sex Pistols, ser punk é gritar e tocar o mais alto e o pior possível, marcando uma postura mix de revolta e descaso para com tudo, incluindo com a própria música, sem se dirigir contra alvos determinados. Historicamente digamos que foi a forma como os adolescentes pós-hippies sentiram o impacto dos protestos da geração anterior, todos barrados definitivamente ou incorporados pelo próprio capital, quando não tornado-se um problema (como no caso das drogas, que deixa de ser visto como agente libertador para se tornar um dos principais vilões do sistema). Agora não é mais possível acreditar nas flores, no amor, na política. Só na própria revolta. Como tudo pode piorar sempre, hoje em dia nem isso, e os emos choram.

Em suma, o punk foi inventado para fazer os adolescentes urbanos gastarem sua energia sexual reprimida. Para isso, acelerou a música pop ao máximo (uma ouvida nos primeiros discos dos Ramones deixa bastante claro essa origem) e lançou palavras de ordem vazias e de muito efeito, como “Fuck the system”, separando assim a postura pessoal (atitudes e posicionamentos do sujeito perante a vida) de sua relação com a arte, engessando a ambas como simples produtos. O punk foi um movimento essencialmente de mercado (criado por um empresário que queria vender suas roupas) que ofertava rebeldia para um público adolescente, sendo musicalmente muito pobre, tão somente uma aceleração de musica pop dos primórdios do rock (as grandes bandas punk, que existem, devem sua qualidade exatamente aquilo que os faz escapar dos limites estreitos do gênero). Foi um grito, ou antes um peido, que teve uma existência tão curta quanto à de seus ícone, Sex Pistols. Nos dias de hoje foi substituída pela música eletrônica, que realiza melhor a função de dissipar energia acumulada, enquanto que seu aspecto de crítica social foi transferida de modo mais coerente para a periferia, com o hip hop.
O Clash percebeu o caráter auto-destrutivo de um movimento que só quer demolir as estruturas sem propor nada em seu lugar, sacando ao mesmo tempo que a anarquia é também uma construção (como nos ensina Alan Moore em V de Vingança, o quadrinho. O filme não é anarquista, mas se muito, democrático), e decidem constituir seu próprio universo a partir de seu terceiro cd, London Calling, voltando àquela antiga e produtiva concepção de que tal construção é estética antes de qualquer coisa.
Como o White Album dos Beatles, e nossa tropicália na mesma época, London Calling trata-se de um mapeamento, um balanço direcionado da história da música popular e uma delimitação de território. Ao invés da fórmula crua do punk, metais, pianos, corais e uma infinidade de estilos diferentes. Joe Strummer (vocais, guitarra rítmica), Mick Jones (vocais, guitarra), Paul Simonon (baixo e vocais), Keith Levene (guitarra guia) e Terry Chimes cresceram na periferia inglesa e tinha muito contato com a comunidade negra de lá. Por isso, sabiam muito bem que berrar Fuck the System! para os negros do gueto era quase o oposto de lançar o mesmo jargão para um político ou um figurão qualquer. Ao invés do anarquismo abstrato e sem direcionamento da geração rebeldes sem causa (Juventude Transviada – 1955 - de Nicholas Ray), o Clash se interessava por movimentos de libertação da América Latina e conclamavam os jovens brancos a apoiarem a luta armada dos negros do gueto (como na música “White Riot”). Por isso o disco é carregado de reggaes, rockabillies, ritmos latinos, disco, ska, além do bom e velho rock n’ roll. Mas o alerta dado pelo punk tem efeito na sonoridade da banda – o momento histórico não é mais o das flores lisérgicas e dos experimentos a la Beatles. Mudar a percepção do mundo já não basta para transforma-lo, apenas oferecendo novas formas de mercadoria. A leitura do Clash é mais sóbria, politizada. Há mistura e pirações, mas sempre mediada pela crueza punk a lembrar o verdadeiro lugar que todas aquelas formas ocupam no mundo, e que não são universais.
Trata-se ainda do mesmo princípio político dos movimentos de contracultura dos 60: ampliar os horizontes e abrir espaço para todos. Só que agora não se trata de celebrar uma união, mas de conclamar à luta para conquistar essa unidade à força. Mesmo o amor. Nesse sentido, a excelente capa do álbum é muito significativa. O mesmo layout de um disco clássico do Elvis, mas ao invés da imagem desse ícone do rock surge Simmons quebrando sua guitarra. Se o punk é essencialmente uma atitude, ela não precisa e não deve se restringir aos moldes de um gênero. Tem de ser uma forma de olhar para o mundo e recriá-lo. Não por acaso, o grupo apoiou diversos movimentos políticos. Com London Calling, o punk atingiu seu maior momento, justamente ao parar de gritar Fuck the System! ao léu e tentar compreender os movimentos de tal sistema.
A título de curiosidade, London Calling era um disco duplo lançado pelo preço de um álbum simples por exigência da banda, fato que obviamente não agradou em nada a gravadora. Para remediar o equívoco e sanar as desavenças com seus empregadores, o Clash foi lá e lançou Standinista! (Sandinismo, em inglês, o movimento comunista da Nicarágua), um disco triplo ainda mais heterogêneo que o anterior, e mais barato que um álbum duplo. Isso é atitude punk.
Por fim um poema de minha autoria que atualiza o punk para os dias de hoje.

Politicamente Correto
Foda-se!
Com moderação.

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